domingo, 4 de setembro de 2016

5 - O Sentido dos Milagres

5 - O Sentido dos Milagres

O milagre, do latim mirum/mirari, que significa “maravilha/maravilhar-se”, indica, lato sensu, um ato de potência (em grego dýnamis), ou seja, um prodígio, a coisa extraordinária, ou “monstruosa”: aquilo que está “fora da ordem”, fora da natureza (em grego téras),com a qual Deus dá um sinal (em grego sēméion; σημειον) àqueles que, em decorrência, ficam assombrados, pasmados, estupefatos (em grego thaumázō; θαυμάζω). Todos estes termos exprimem aspectos de uma mesma realidade a que chamamos milagre. Eles exprimem, em suma: a natureza extraordinária do que é considerado um milagre; a sua origem (no sentido da potência daquele que o opera); o seu valor de sinal; e seu efeito surpreendente.  Encontramos, também, o sentido radical de palavras portuguesas muito populares como “admirável” e “maravilhoso”, sem darmo-nos conta, contudo, que quando as usamos estamos nos referindo a algo que é “milagroso”, em último senso.
Milagre é possível?
O saudoso Dom Estêvão Bettencourt procura dar resposta a esta pergunta numa de suas memoráveis lições. A pergunta é sempre atual. Em fato, “a possibilidade do milagre é contestada hoje em dia em nome de correntes da ciência, da filosofia e até da Teologia; alegam que não conhecemos suficientemente as forças e as leis da natureza para poder dizer que determinado fenômeno supera as leis da natureza e só se explica pela intervenção de Deus”[1], dizia ele.  E ponderava:
...o milagre não consiste essencialmente em ser portento absolutamente inexplicável pela ciência; mas, antes do mais, o milagre é um sinal de Deus para os homens, que Lhe pedem uma expressão de seu amor ou sua bondade. Para que haja tal sinal, basta que o fato seja totalmente inexplicável pela ciência contemporânea ao fenômeno e que se tenha produzido em contexto digno de Deus ou como resposta de Deus à prece humilde e confiante dos homens. Fora desse contexto religioso não se pode falar de milagre; haverá então um fenômeno paranormal ou coisa semelhante[2].
Até o século XVI a possibilidade do milagre não importava em muitas contestações. Na esteira do racionalismo que se seguiu, contudo, este senso tornou-se cada vez mais confrontado. Baruch Spinoza, Voltaire, David Hume, Pierre Bayle, entre outras estrelas do racionalismo, debruçaram-se sobre a questão.  Negar a existência do milagre parece conditio sine qua non para um indivíduo ser considerado uma pessoa de espírito racional. E assume-se, preconcebidamente, que os estatutos da fé e da ciência são fadados a serem inconciliáveis por toda a eternidade.
Tal questão foi objeto de uma encíclica do Papa João Paulo II, que já no preâmbulo afirmava:
A fé e a razão constituem como que as duas asas pelas quais o espírito humano se eleva para a contemplação da verdade. Foi Deus quem colocou no coração do homem o desejo de conhecer a verdade e, em última análise, de O conhecer a Ele, para que, conhecendo-O e amando-O, possa chegar também à verdade plena sobre si próprio[3].
A Igreja, em verdade, é extremamente rigorosa - extremamente “racional”, se quisermos - quando na apreciação de um fenômeno que possa vir a ser considerado um milagre. É tão criteriosa e rigorosa que, para ter-se uma ideia, em Lourdes, o santuário mariano mais frequentado - para onde afluem milhões de pessoas todos os anos em busca de milagres  -, desde 1858 até hoje, somente 65 curas inexplicáveis e milagrosas foram reconhecidas pelas autoridades eclesiásticas[4].
É de surpreender, portanto, se pensarmos nos 65 casos de Lourdes, que no livro do Postulador da Causa dos Santos, Ernesto Piacentini, analisando a tipologia dos milagres atribuídos à intercessão de Santa Rosa, elenca mais de mil[5], assim distribuídos:
Milagres em vida (1233-1251): 12
Milagre em morte (6-3-1251): 1
Milagres antigos (1251-1404); 21
Milagres modernos (1406-1457): 169
Milagres recentes (1458-1738): 290
Milagres de Fabriano[6] (1738-1740): 43
Milagres de 1748 a 1918: 29
Milagres de 1918 a 1990: 15
Milagres nos ex-votos:
            A – pinturas em tela: 29
            B – corações de prata: 502
            C – outros objetos: 60
Total: 1171

Evidentemente, isto não significa que todos foram chancelados pelas autoridades eclesiásticas, ou que sequer foram submetidos a análises por estas autoridades. Mas, o número impressiona, mesmo assim, principalmente considerando-se os ex-votos que são testemunhos de graças alcançadas. Mas significa, certamente, o quanto Rosa é amada, e o tanto que é depositado de confiança e esperança na sua poderosa intercessão junto a Deus.
Mas, o que parece fundamental no que diz respeito aos milagres é o próprio posicionamento do fiel, do cristão em relação a eles. Quanto a isto é elucidadora a digressão do já citado Dom Estêvão Bettencourt respondendo a pergunta: ”Crer por causa dos milagres ou apesar dos milagres?”.  Vale a pena lê-la na íntegra:
Há católicos que se sentem embaraçados pela apresentação de milagres e afirmam crer não por causa dos milagres, mas apesar dos milagres.
A propósito, deve-se afirmar que o cristão não crê em Cristo e na Igreja por causa dos milagres. Não há razões humanas cuja evidência obrigue o homem a crer; a fé será sempre uma adesão à Palavra de Deus no claro-escuro ou na penumbra. É a resposta a Deus que chama a atenção e atrai, mas deixa a liberdade ao homem para que diga Sim ou Não ao Senhor.
Deve-se, porém, dizer que, se a fé é um ato da inteligência humana que responde à Verdade de Deus, ela não é um ato cego, mas um ato baseado sobre credenciais. Por isso, à atração interior de Deus que chama, se associam motivos extrínsecos ou critérios racionais que evidenciam a credibilidade ([1]) da Palavra de Deus; entre esses critérios extrínsecos e racionais estão os milagres. Estes são fatos experimentais, que a inteligência humana examina com todo o seu acume; quando ela verifica que são sinais de Deus inexplicáveis pelas forças da natureza, a inteligência humana os assume como credenciais das verdades da fé. Diz o Concilio do Vaticano I:
"A fim de que o obséquio da nossa fé seja consentâneo com a nossa razão, quis Deus que, com os subsídios interiores ministrados pelo Espírito Santo, fossem dadas provas exteriores da Revelação, isto é, fatos divinos, em primeiro lugar os milagres e as profecias, que são certíssimos sinais da revelação divina" (Constituição Dei Filius, de 24/04/1870).
Por conseguinte, o cristão não crê por causa dos milagres, mas é ajudado por estes, visto que os milagres tornam razoável o ato de fé e assim também o tornam mais fácil.
Como sinal de Deus, o milagre é uma ajuda ao ato de fé..., ajuda em duplo sentido: 1) para o homem indiferente e distante de Deus, pode ser uma "sacudidela", um empurrão que o leve a colocar o problema de Deus, da religião e da fé, pois lhe abre perspectivas que fogem à rotina dos acontecimentos; 2) para a pessoa que já crê, o milagre pode ser um apoio em suas dúvidas e tentações. Particularmente em nossos dias, quando a fé é atacada de vários modos e o cristão ressente os embates respectivos, o milagre é um sinal de que Deus está presente à história dos homens; o milagre é uma entrada de Deus no cotidiano dos homens, que lhes chama a atenção e aviva a convicção de que o amor de Deus não esquece os homens mesmo nos momentos de mais intenso silêncio[7].
Enfim, poderíamos afirmar juntamente com um respeitado e polêmico teólogo moderno:
Os milagres não são, de forma alguma, algo secundário no cristianismo. E o futuro do cristianismo talvez dependa até da possibilidade de sermos capazes de redescobrir o encanto dessas provas perceptíveis do amor divino[8].
Ou talvez fosse mais aconselhado simplesmente meditar as palavras contidas no evangelho do discípulo amado:
Jesus, pois, operou também em presença de seus discípulos muitos outros sinais, que não estão escritos neste livro. Estes, porém, foram escritos para que creiais que Jesus é o Cristo, o Filho de Deus, e para que, crendo, tenhais vida em seu nome. (João 20: 30,31)
E crer, acima de tudo crer, pois, Ele nos disse que, na verdade:

aquele que crê em mim também fará as obras que eu faço, e fará ainda maiores (João 14: 12).







[1] Pergunte e Responderemos, N. 383, Abril, 1994
[2] Idem
[3] Fides et Ratio. Carta Encíclica do Papa João Paulo II. Roma: 14 de setembro de 1998
[4] BETTENCOURT, Pergunte e Responderemos, N. 391, 1994
[5] PIACENTINI, 1991, pg 274
[6] Este milagres, 43 precisamente, ditos “di Fabriano” são reportados em um manuscrito notarial escrito em Fabriano - comuna italiana da Província de Ancona – entre os anos 1738 e 1740, pelo notário Giovanni Francesco Frattini, que depois remeteu-o para Viterbo e é conservado no Archivio del Monastero di Santa Rosa. (PIACENTINI, op.cit., pg 157)
[7] Pergunte e Responderemos, N. 383, Abril, 1994
[8] BERGER, 2003, pg  7

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