domingo, 4 de setembro de 2016

5.1 - O Coração Incorrupto de Santa Rosa de Viterbo


5.1 - O Coração de Rosa

“Ele(a) tem bom coração”; “você tem bom coração”! Quem jamais ouviu estas expressões? Quem nunca as disse? Quem não as entende? Todos sabem, com certeza, que não é referência ao aspecto físico de alguém, ao estado de saúde deste órgão pulsante que irriga o sangue por todo o nosso organismo, embora até possa ser.

“A palavra “coração” corre o risco de se desgastar num sentimentalismo desagradável, desprezível”, dizia o Padre Paschoal Rangel, e, no entanto, “é uma palavra fundamental, insubstituível, em qualquer língua. É indispensável[1]”.  E continuava:

"Coração" é uma palavra originária, primigênia, fundante. Todos parecem entendê-la. No entanto, ela ameaça escapar-nos, a todo instante, indefinível, cambiante, caleidoscópica. Um mínimo de movimento, de inflexão na voz; a mínima nuança da frase; uma inversãozinha qualquer - e ei-la, de repente, outra, tão antiga e tão nova, sempre surpreendente como uma recém-nascida. Pascal, que soube valorizar, como poucos escritores, os termos comuns da língua popular, tinha um enorme carinho com a palavra "coração". Como a várias outras da fala do povo, parecia achá-la primordial, inenquadrável conceptualmente, maravilhosamente isenta de equivocidade. Tal como acontece com os termos e figuras elementares da geometria, a natureza teria suprido, no caso de palavras básicas como "coração", à incapacidade da razão lógica para defini-las, suscitando em todos, ao ouvi-las, uma ideia semelhante, capaz de preservar-nos da confusão, da incomunicação[2].


Coração de Santa Rosa de Viterbo


O coração é o símbolo do amor, é o lugar onde pensamos, poeticamente, ser a sua fonte e residência: “te amo de todo coração”, “te amo do fundo do coração”, quando queremos afirmar o quanto gostamos de alguém; ou “o meu coração está ferido”, quando queremos comunicar uma profunda desilusão.

No livro “Sagrado Coração do Homem”, meditando sobre a Ladainha do Sagrado Coraçãode Jesus, o Padre Paschoal faz uma belíssima digressão sobre o significado e usos desta palavra tão doce, informando, por exemplo, como, e até quantas vezes ela é empregada na Bíblia, alicerçado em Vigouroux[3]. Somente no Antigo Testamento, a palavra com sua variante aparecem 850 vezes:  leb 598 citações, e outras 252 citações de lebab.

[Confiram o nosso estudo: O Coração nas Sagradas Escrituras]

Isto deveria ser suficiente para tratarmos a palavra “coração” com todo respeito e carinho e procurarmos conhecê-la “de coração”, pois “o coração tem as suas razões que a razão desconhece: sabemo-lo por mil exemplos”, como afirmou Pascal, num pensamento[4] deveras repetido, mas, talvez, pouco compreendido. Ou como o mesmo Pascal afirmou em um pensamento menos conhecido, mas, talvez mais profundo:

É o coração que sente a Deus, e não a razão. Eis aí o que é a fé: Deus sensível ao coração, não à razão[5].

Rosa teve um “coração” (espiritual) que sentiu e se entregou totalmente a Deus. Talvez, por isto, Deus tenha milagrosamente preservado o coração (órgão) desta destemida jovenzinha para testemunhar, ao longo dos séculos, a Sua misericórdia[6], Sua bondade, e o prêmio reservado àqueles que a Ele se entregam.

Com efeito, no reconhecimento canônico do corpo de Rosa em 1921, quando, pela primeira vez, foi feita uma análise de sua condição interna, descobriu-se algo maravilhoso: o coração lá estava em estado de excepcional conservação, íntegro depois de sete séculos, apenas diminuto em tamanho. Este foi então removido e custodiado em separado do corpo.

Dois belíssimos relicários o receberam, desde então: o primeiro foi doado pelo Papa Bento XV (1914-1922) que declarou Santa Rosa de Viterbo a Padroeira da Juventude Feminina da Ação Católica, acatando pedido da Venerável Armida Barelli[7], devotíssima de Rosa, assim como o fora Mario Fani, o viterbense fundador da Ação Católica[8]. Em 1929, o primeiro relicário foi substituído por outro belíssimo doado pelo Papa Pio XI (1922-1929).
RELICÁRIO DOADO POR PIO XI


Todos os anos, no dia 2 de setembro, antecedendo a Festa da Translação com o transporte da Macchina di Santa Rosa, o relicário com o coração incorrupto é levado em cortejo pelas ruas de Viterbo no chamado Corteo Storico e Processione con Il Cuore di Santa Rosa.

O milagre serve-nos principalmente como um sinal de Deus, uma “ajuda ao ato de fé”, já o dissemos[9]. O que Deus nos diz, então, mediante o coração de Rosa?

Para obter a resposta, para penetrar neste mistério, primeiramente, como dizia o Padre Paschoal, o que precisamos de começar a fazer, com o maior interesse, é recuperar a palavra, a expressão: coração[10].

Não podemos perdê-la, porque, como dizia Rahner, essa palavra é insubstituível. Se ela diz coisas básicas, indispensáveis ao cristianismo, então, será indispensável restituir-lhe a força fundadora. E isto se faz pela "meditação", por um esforço de repensamento, pela aproximação de ideias-forças, que se fecundem mutuamente, que comuniquem uma à outra seu lastro afetivo, emocional, suas virtualidades religioso-espirituais para a ação pastoral, para a existência cristã[11].

E, feito isto[12], miremos o coração de Rosa. Este coração que foi totalmente entregue a Deus, e que se constituiu em um “sinal” que Ele nos legou, há tantos séculos. Não fiquemos, contudo, somente na contemplação deste milagre, inconsequentemente, por mera curiosidade, mas, meditemos sobre a vida e o exemplo deixado por esta jovenzinha que nas palavras de León de Kerval:

é uma das personificações mais originais e mais completas do espírito franciscano, é como a encarnação viva das ideias e das aspirações lançadas e propagadas entre as massas, no século XIII, pelos filhos do Pobre de Assis[13].



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[1] RANGEL, 1993, pg 17 e seguintes.
[2] Idem, pg 17
[3] Dictionnarie de la Bible, art “Coeur”.
[4] PASCAL, Blaise. Pensamentos. Porto Alegre, Editora Globo, 1973. Pensamento nº 253 (277).
[5] Idem, Pensamento nº 254 (278).
[6] Esta palavrinha que tanto usamos em que aparece “coração” - e que tanto pedimos que Deus a tenha por nós -, sem nem perceber, às vezes. De fato, “misericórdia” origina-se do latim, compreendendo “miseratio” (derivado de “miserere”, que significa “compaixão”) e “cordis” (derivado de “cor”, “coração”).
[7] MIANO, Franco. L’intuizione di um progetto apostolico. In, TRIONFINI, Paolo (org). Armida Barelli e Padre Enrico Mauri: un’amicizia spirituali per un progetto apostolico. Milano: Editrice AVE, 2012. Pg 10.
[8] Mario Fani, que passava muitas horas em oração lado do corpo de Santa Rosa, teve a intuição, depois de uma noite em vigília na Igreja de Santa Rosa, de fundar o Circolo Santa Rosa, com o lema “Bisogna agire!” (Devemos agir). Foi a semente do que viria a ser a Ação Católica. (Discorso di Paolo VI ai Participanti al Convegno degli Assistenti e Presidenti Diocesani dell’Azione Cattolica Italiana. Venerdì, 12 maggio 1972).
[9] Confira o capítulo “O Sentido dos Milagres”.
[10] Op. cit., pg 18.
[11] Idem
[12] Confira o capítulo “O Coração nas Sagradas Escrituras”.
[13] “...c’est l’une des personnifications les plus originales e les plus complètes de l’espirit franciscain, c’est comme l’incarnation vivante des idées e des aspirations jetées et propagées dans les masses, aux XIII ͤ siècle, par les fils du Pauvre d’Assise”. KERVAL, 1896, pg 17.

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